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Aspectos Constitucionais, Legais e Jurisprudenciais do Reconhecimento da Nacionalidade Italiana: Atual Panorama e Prognósticos

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Silvio Ferigato Neto, advogado no Brasil e na Itália, especialista em Direito Internacional e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor de Direito Processual Civil, autor das obras Passe em Concursos Públicos — Questões Comentadas – Ministério Público Estadual e Federal e Exame da OAB Unificado – 1ª Fase, ambas publicadas pela Editora Saraiva, bem como de diversos artigos jurídicos.

Umberto Eco, em sua obrigatória obra “Como se faz uma tese” (Come si fa una tesi di laurea, 1977), define os chamados temas quentes, os quais, parafraseando o mestre, são aqueles muito atuais, muito discutidos na imprensa, na política ou no meio acadêmico. Pois bem. Não há tema mais quente na imprensa, nos meios acadêmico-jurídicos e, não bastasse, no ambiente forense italiano que o reconhecimento da nacionalidade italiana, notadamente quando acrescentamos à equação as quase setenta mil nacionalidades italianas reconhecidas a ítalo-brasileiros apenas em 2024, segundo o ISTAT ou Instituto Nacional de Estatística da Itália.

Em singelas linhas, para os nascidos até o último instante de 27 de março de 2025, a norma aplicável no que tange à nacionalidade italiana, sem limitações ou questões de alta indagação, era a literalidade do artigo 1º da Lei 91, de 5 de fevereiro de 1992, segundo a qual todo filho de nacional italiano, seja o genitor homem ou mulher, nasce igualmente italiano, independentemente do Estado do nascimento. Não outra a razão pela qual, por exemplo, um garoto nascido no Brasil, com tataravô italiano, é italiano desde o nascimento ou italiano nato, porquanto se aludido tataravô é italiano, o bisavô nasceu italiano, assim como o avô, em virtude da nacionalidade do bisavô, aplicando-se o mesmo raciocínio para o pai e para o sujeito de nossa hipótese.

Dessarte, nunca houve falar em limitação quanto ao número de gerações entre o requerente do reconhecimento da nacionalidade e seu respectivo ascendente, podendo a linha de ascendência, exemplificativamente, ser composta por três ou quatro gerações até alcançar o primeiro ancestral titular da nacionalidade italiana, ressalvadas as discussões sobremaneira interessantes e não raro complexas atinentes a ancestrais nascidos em Estados anteriores à formação do Reino da Itália, criado oficialmente aos 17 de março de 1861, mas cujos territórios passaram a integrar a Itália, como o Reino Lombardo-Vêneto ou o Grão-Ducado da Toscana. Mas este tema será abordado como se deve em discussões futuras.

Tornando ao ponto sobre o qual se debruça este despretensioso ensaio, é lícito afirmar, então, que a República Italiana adota o princípio ou regra do ius sanguinis quanto à nacionalidade, considerando-se italiano nato o descendente de italiano, pouco importando o Estado do nascimento, em vez de consagrar o denominado ius soli, caso em que se considera nacional o nascido no território do respectivo Estado, pouco importando a nacionalidade dos genitores. Portanto, ao prestigiar o ius sanguinis, a Itália evita que ondas de dezenas de milhares de imigrantes, na macromaioria das vezes representantes de mão de obra absolutamente desqualificada, fixem-se em definitivo em seu território, a sobrecarregar a já pressionada estrutura de Estado de bem-estar social existente no país europeu.

Todavia e causando calafrios nos mais de trinta milhões de brasileiros com ancestralidade italiana, não bastassem os aproximadamente cinquenta milhões de descendentes ou oriundi espalhados pelo mundo, principalmente na Argentina e nos Estados Unidos, aos 28 de março de 2025 entrou em vigor sem prévio debate na comunidade acadêmica italiana, tampouco sinalização inequívoca do Governo de turno, o controverso – em termos mínimos – Decreto Tajani, em alusão ao Ministro Antonio Tajani, dos Assuntos Exteriores, ou Decreto-Lei 36 de 2025, que entre outras regras, limitou em duas gerações a transmissão da nacionalidade italiana, com efeitos retroativos, ou seja, atingindo inclusive aqueles nascidos até 27 de março, véspera da entrada em vigor do diploma, ousando até mesmo apregoar que os oriundi nunca foram nacionais italianos.

Em síntese, consoante o decreto, é italiano nato apenas o filho ou o neto do nacional italiano, desde que ao menos um dos pais tenha nascido na Itália, tenha vivido na Itália por pelo menos dois anos consecutivos antes do nascimento do filho ou, derradeira hipótese, um dos avós tenha nascido na Itália. Aos 23 de maio de 2025, o Decreto-Lei 36 foi convertido na Lei 74 pelo Parlamento Italiano, que entrou em vigor no dia 28 do mesmo mês.

Pois bem.

Considerando a solar bizarrice e, sem medo de ousar, a meridiana teratologia da norma ora em análise, que agride aos minimamente familiarizados com as garantias constitucionais comumente consagradas pelo Direito Constitucional do mundo civilizado, integralidade dos juristas italianos que se manifestaram sobre o texto da Lei 74 apontou um sem-número de inconstitucionalidades pavorosas em seu teor, inclusive este autor, que não se pejou em divulgar crítica preliminar já aos 28 de março último.

Com efeito e exemplificativamente, porquanto estudo crítico exauriente demandaria uma monografia, aludida Lei da Infâmia, ao aviltar mais de um século de amor devoto decantado em prosa e verso pelos oriundi à pátria-mãe Itália, macula de modo inconciliável garantia sacrossanta da nacionalidade, direito da personalidade amparado sem margem a dúvidas pela Constituição da República Italiana (art. 2º), à igualdade ou isonomia (art. 3º) e à proteção da nacionalidade (art. 22). Suficiente não fosse, conspurca o artigo 20 do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece a “cidadania da União”, complementar à nacionalidade de cada Estado-membro, além de afrontar sólida jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), com sede em Luxemburgo, que robustece o princípio da efetividade dos direitos de cidadania da União Europeia em correlação com a cidadania nacional.

No que tange à nacionalidade, trata-se do vínculo jurídico que existe entre um indivíduo, neste contexto interpretado exclusivamente como pessoa física, e determinado Estado, assegurando àquele uma gama de direitos, como a proteção ou amparo em diversos prismas, mas também uma série de deveres, como o serviço militar, sempre a depender de regras específicas mutáveis num ou noutro contexto. De outra banda, os direitos da personalidade dizem respeito ao ser, àquilo que uma pessoa é, à imagem ou conjuntos de elementos que representa o ser internamente, significa dizer perante si, mas igualmente ante o corpo social. Eu sou italiano, meu nome é Silvio, guardo-me no espelho e sei o que espero ver, tenho uma reputação que reproduz consequências de minhas ações. Pois bem. Nacionalidade, nome, imagem e prestígio são todos exemplos de direito da personalidade, que não se confundem com os direitos patrimoniais, que dizem respeito ao ter.

Ao afirmar em seu artigo 2º que o Estado italiano reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como ser individual quer nas formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade, resta evidente que a Constituição da República Italiana garante os direitos da personalidade, os direitos do ser, inclusive a nacionalidade italiana, aniquilada pelos efeitos retroativos da Lei 74, uma vez que nascidos italianos, por força do artigo 1º do Decreto-Lei 36 de 2025, deixaram de o ser.

Quanto à igualdade ou isonomia, preconiza o artigo 3º da Lei Maior italiana que todos são iguais perante a lei, vedada a discriminação por qualquer motivo, devendo a República remover todos os obstáculos à liberdade e à igualdade dos nacionais, tendo sempre em mira o bem comum. À evidência, não se coaduna com tal espírito norma que trata filhos e netos de italianos com pais e avós nascidos na Itália, conferindo-lhes nacionalidade italiana, de modo diferente de filhos e netos de italianos com pais e avós nascidos fora da Itália, hipótese em que não haveria falar em nacionalidade italiana.

Suficiente não fosse, igualmente anti-isonômica a exigência legal de que ao menos um dos pais do nacional, quando tal genitor italiano não tenha nascido na Itália, tenha vivido no país europeu por pelo menos dois anos consecutivos antes do nascimento do filho. Nesta hipótese, o tratamento é desigual em virtude de insólito período de domicílio em território do Estado italiano, inconstitucional inclusive por macular o princípio da razoabilidade ou principio di ragionevolezza, derivante dos artigos 1º, 2º e 3º da Constituição da República Italiana.

Consolidado pela Corte Constitucional como princípio implícito e utilizado como fundamento para controle de constitucionalidade desde a sentença número 55 de 1968, aludido Tribunal sustentou violadoras da razoabilidade leis que criam distinções sem fundamento lógico, com consequente declaração de inconstitucionalidade exatamente porque introduzem desigualdade injustificada, desproporção ou incoerência.

Por seu turno, no que pertine à proteção da nacionalidade, o artigo 22 da Carta Fundamental italiana é hialino ao delinear que “ninguém pode ser privado, por motivos políticos, da capacidade jurídica, da nacionalidade, do nome”. Não é exclusivo das mentes mais geniais – ou pelo menos não deveria ser – que a motivação do abjeto Decreto Tajani foi política, utilizado pelo Governo de turno como “flauta para encantar ratos”, porquanto como na da famosa lenda medieval alemã do “Flautista de Hamelin” (Der Rattenfänger von Hameln), em que o misterioso flautista começa por limpar a cidade dos ratos, para logo depois desaparecer com as crianças locais, a norma parece proteger o povo italiano de uma incursão em massa de falsos nacionais, sedentos pelos benefícios do generoso welfare state, enquanto o verdadeiro problema não está nos italianos nascidos no Brasil ou na Argentina, amantes genuínos da Pátria-Mãe e de fácil adaptação sociocultural, mas na invasão de imigrantes ilegais e de falsos refugiados.

A Corte Constitucional italiana, por sua vez e ao longo de décadas, tem reiteradamente sustentado que a nacionalidade não se resume a um status administrativo, mas sim a elemento constitutivo da pessoa, condição para o exercício de outros direitos e garantias. Já em 1975, na sentença n. 87, declarou-se a inconstitucionalidade da norma que impunha à mulher italiana a perda da cidadania pelo simples fato de contrair matrimônio com estrangeiro. Tal decisão, amparada nos artigos 3º e 22 da Constituição, eliminou discriminação de gênero odiosa, reafirmando a igualdade como princípio basilar.

Em seguida, a sentença n. 30 de 1983 reforçou que a cidadania é direito inviolável, insuscetível de ser suprimido arbitrariamente, em direta correlação com o artigo 2º da Carta Constitucional, que garante os direitos invioláveis do homem. A Corte, nessa linha, elevou a cidadania à condição de direito fundamental, inseparável da dignidade humana.

Na sentença n. 1 de 1987, de outra banda, foi reconhecida a transmissão da cidadania também pela linha materna após a entrada em vigor da Constituição republicana, corrigindo histórica desigualdade, em fiel observância ao artigo 29, que proclama a igualdade jurídica entre os cônjuges. Mais adiante, em 2006, a sentença n. 446 reiterou que a cidadania constitui status essencial ao pleno exercício dos direitos constitucionais, não sendo um simples atributo formal, mas a própria condição de pertencimento político-jurídico.

Não bastasse, em 2010, na sentença n. 258, a Corte reafirmou a ilegitimidade de distinções arbitrárias que limitassem o ius sanguinis, vedando discriminações incompatíveis com o princípio da igualdade (art. 3º) e com os compromissos internacionais assumidos pela República Italiana (art. 117).

Por derradeiro, na recente e paradigmática sentença n. 142 de 2025, ao analisar o Decreto-Lei 36 e a Lei 74, o Tribunal Constitucional não hesitou em afirmar que a nova disciplina não poderia atingir processos em curso. A retroatividade pretendida, que aniquilaria direitos já consolidados, foi rechaçada em respeito à razoabilidade (art. 3º), à tutela da confiança legítima, à segurança jurídica e às garantias do devido processo legal (arts. 24 e 111). Trata-se de decisão absolutamente vital e recente, porquanto a Corte foi instada a se manifestar pelos Tribunais de Roma, Florença e Milão, grosso modo, sobre pretensa inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 91/1992, que estabelece a nacionalidade italiana ius sanguinis sem limitação de gerações. A tese restritiva dos tribunais das regiões restou rejeitada, como não poderia deixar de ser.

Ainda sobre a sentença n. 142, quer parecer relevante destacar que a nacionalidade é direito material, substantivo, significando dizer se tratar de um vínculo jurídico que carreia garantias e deveres, não de um direito formal, que são as normas que definem, de outra banda, como os direitos materiais são aplicados, a exemplo das regras processuais sobre os requisitos de uma petição inicial, contestação ou recurso. Tal definição não é de somenos relevância na medida em que, ao afirmar que as limitações do Decreto Tajani não se aplicam a nacionais italianos que iniciaram processos de reconhecimento de tal nacionalidade antes da entrada em vigor da norma, sem aludir que se aplicariam aos nacionais que ainda não haviam exercitado o direito de ação em solo italiano, a Corte Constitucional não condicionou o exercício e o reconhecimento de um direito material (a nacionalidade) a um pretenso tempestivo exercício de direito formal ou processual (o direito de ação). Em outras palavras, o direito material à nacionalidade existe e é incorporado ao ser no momento da aquisição da personalidade, não podendo ser fulminado pelo não exercício de direito formal.

Não nos esqueçamos de que as ações de reconhecimento de nacionalidade são declaratórias, na medida em que reconhecem a existência de um vínculo jurídico entre a pessoa e a República Italiana, com sentenças igualmente declaratórias que não criam – mas reconhecem – uma relação jurídica de direito material, motivo pelo qual produzem efeitos ex tunc, retroagindo à data da aquisição de personalidade, isto é, a data do nascimento, consoante o artigo 1º do Código Civil italiano.

Com efeito, em todos os julgados adrede aludidos a Corte Constitucional deu guarida à tese segundo a qual a cidadania italiana, inclusive a dos descendentes nascidos em terras tupiniquins, é direito da personalidade, expressão do ser, que não pode ser manipulado como mero instrumento político. Não há razoabilidade em negar italianidade aos oriundi, quando são precisamente eles os verdadeiros herdeiros da Pátria-Mãe Itália, mantenedores de vínculos históricos, culturais e afetivos que jamais se romperam.

Delineado o atual quadro constitucional, legal e jurisprudencial a respeito do reconhecimento da nacionalidade italiana, tema que desperta altíssimo interesse do Governo, corpo social e imprensa italiana, igualmente dos mais de trinta milhões de ítalo-brasileiros e dos por volta de cinquenta milhões de oriundi ao redor do mundo, é lícito afirmar que, no que tange ao posicionamento da Corte Constitucional italiana, aguarda-se uma decisão que preservará a nacionalidade italiana de todos os nascidos até os derradeiros segundos de 27 de março de 2025, porquanto detentores de direito adquirido à italianidade, por todas as razões sobre as quais este despretensioso ensaio se debruçou, instando ser dito que, para os nascidos a partir de 28 de março, todavia, o cenário é diverso, devendo ser mantida a regra da limitação a descendentes de pais e avós italianos, com declaração de inconstitucionalidade do já mencionado trecho do Decreto Tajani que diferencia descendentes com ancestrais nascidos em território italiano daqueles, ao contrário, que possuem pais e avós italianos nascidos fora da Itália, por ofensa à igualdade e ao principio di ragionevolezza.

De rigor salientar que o sistema de controle de constitucionalidade italiano é híbrido, ou seja, combina aspectos do controle de constitucionalidade difuso e do concentrado, sendo disciplinado, em linhas gerais, pelos arts. 134, 136 e 137 da Constituição da República, regulamentados pela Lei Constitucional n. 1 de 1948 e, sobretudo, pela Lei n. 87 de 11 de março de 1953, art. 23. Com efeito, qualquer parte ou o juiz de ofício pode arguir a inconstitucionalidade de norma infraconstitucional, caso em que o juiz determinará a suspensão do processo, com subsequente remessa do feito para decisão da Corte Constitucional, que decidirá se determinada espécie normativa é ou não inconstitucional, podendo ser a declaração de inconstitucionalidade parcial.

Suficiente não fosse a provável limitação quanto a gerações para os nascidos a partir de 28 de março de 2025, de constitucionalidade ao menos defensável, é fato que o Governo central, com amplo apoio da opinião pública e da mídia nacional, adotará todas as medidas administrativas restritivas possíveis, como o aumento de custos e da já proverbial burocracia italiana para o reconhecimento, quiçá concentrando a competência para os procedimentos administrativos em órgãos específicos, criados ou deslocados provavelmente para as capitais de província, região ou até mesmo para Roma.

Inegável que a mercantilização do reconhecimento da nacionalidade italiana, o surgimento de inúmeras empresas brasileiras que sequer consentem ou favorecem o contato entre clientes brasileiros e advogados italianos, o sem-número de fraudes em certidões e em declarações de residência, tantas vezes a configurar conluio entre operador sul-americano e agente público italiano, tudo amplamente divulgado pela imprensa da Pátria-Mãe, nem sempre com ética e boa-fé, mas ao contrário e em muitas ocasiões, de modo fanfarronesco e generalizante, contribuem decisivamente para a consolidação do panorama atual, bem como para o prognóstico nada alvissareiro do reconhecimento da nacionalidade italiana, razão pela qual se aconselha enfaticamente a eleição, por parte de ítalo-brasileiros que buscam a formalização de seu vínculo com a  Itália, de profissionais sérios, advogados com comprovada experiência e efetiva parceria com escritórios e colegas estabelecidos na Europa, com resultados comprovados, expertise à prova de questionamentos e clareza na comunicação.

À derradeira conta, após décadas de reiteração de abusos, a decantada contenção ou obstação do Governo italiano bateu às portas, demonstrando que somos inexoravelmente escravos das consequências de nossas ações.

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